Êxodo 20:12
Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.
Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.
Atenção
e carinho estão para a alegria da alma, como o ar que respiramos está para a
saúde do corpo. Nestas últimas décadas surgiu uma geração de pais
sem filhos presentes, por força de uma cultura de independência e autonomia
levada ao extremo, que impacta negativamente no modo de vida de toda a família. Muitos filhos adultos ficam
irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos laboratórios.
Irritam-se pelo seu andar mais lento e suas dificuldades de se organizar no
tempo, sua incapacidade crescente de serem ágeis nos gestos e decisões.
A ordem era essa: em busca de
melhores oportunidades, vinham para as cidades os filhos mais crescidos e não
necessariamente os mais fortes, que logo traziam seus irmãos, que logo traziam
seus pais e moravam todos sob um mesmo teto, até que a vida e o trabalho duro e
honesto lhes propiciassem melhores condições. Este senhor, com olhos
sonhadores, rememorava com saudade os tempos em que cavavam buracos nas terras
e ali dormiam, cheios de sonho que lhes fortalecia os músculos cansados. Não
importava dormir ao relento. Cediam ao cansaço sob a luz das estrelas e das
esperanças.
A
evasão dos mais jovens em busca de recursos de sobrevivência e de
desenvolvimento, sempre ocorreu. Trabalho, estudos, fugas das guerras e
perseguições, a seca e a fome brutal, desde que o mundo é mundo pressionou os
jovens a abandonarem o lar paterno. Também
os jovens fugiram da violência e brutalidade de seus pais ignorantes e de mau
gênio. Nada disso, porém, era vivido como abandono: era rompimento nos casos
mais drásticos. Era separação vivida como intervalo, breve ou tornado
definitivo, caso a vida não lhes concedesse condição futura de reencontro, de
reunião.
Separação e responsabilidade
Assim como os pais deixavam e, ainda
deixam seus filhos em mãos de outros familiares, ao partirem em busca de
melhores condições de vida, de trabalho e estudos, houve filhos que se
separaram de seus pais. Em geral, porém, isso não é percebido como abandono
emocional. Não há descaso nem esquecimento. Os filhos que partem e partiam,
também assumiam responsabilidades pesadas de ampará-los e aos irmãos mais
jovens. Gratidão e retorno, em forma de cuidados ainda que à distância. Mesmo quando um filho não
está presente na vida de seus pais, sua voz ao telefone, agora enviada pelas
modernas tecnologias e, com ela as imagens nas telinhas, carrega a melodia do
afeto, da saudade e da genuína preocupação. E os mais velhos nutrem seus corações e curam as
feridas de suas almas, por que se sentem amados e podem abençoá-los. Nos tempos
de hoje, porém, dentro de um espectro social muito amplo e profundo, os
abandonos e as distâncias não ocupam mais do que algumas quadras ou quilômetros
que podem ser vencidos em poucas horas.
Nasceu
uma geração de ‘pais órfãos de filhos’. Pais órfãos que não se negam a prestar
ajuda financeira. Pais mais velhos que sustentam os netos nas escolas e pagam
viagens de estudo fora do país. Pais
que cedem seus créditos consignados para filhos contraírem dívidas em seus
honrados nomes, que lhes antecipam herança. Mas que não têm assento à vida familiar
dos mais jovens, seus próprios filhos e netos, em razão – talvez, não
diretamente de seu desinteresse, nem de sua falta de tempo – mas da crença de
que seus pais se bastam.
Este estilo de vida, nos dias comuns,
que não inclui conversa amena e exclui a ‘presença a troco de nada, só para
ficar junto’, dificulta ou, mesmo, impede o compartilhar de valores e
interesses por parte dos membros de uma família na atualidade, resulta de uma
cultura baseada na afirmação das individualidades e na política familiar focada
nos mais jovens, nos que tomam decisões ego-centradas e na alta velocidade:
tudo muito veloz, tudo fugaz, tudo incerto e instável.
Vida
líquida, como diz Zygmunt Bauman, sociólogo polonês. Instalou-se e
aprofundou-se nos pais, nem tão velhos assim, o sentimento de abandono. E de
desespero. O universo de relacionamento nas sociedades líquidas assegura a
insegurança permanente e monta uma armadilha em que redes sociais são
suficientes para gerar controle e sentimento de pertença. Não
passam, porém de ilusões que mascaram as distâncias interpessoais que se
acentuam e que esvaziam de afeto, mesmo aquelas que são primordiais: entre pais
e filhos e entre irmãos.
O desespero calado dos pais
desvalidos, órfãos de quem lhes asseguraria conforto emocional e, quiçá
material, não faz parte de uma genuína renúncia da parte destes pais, que ‘não
querem incomodar ninguém’, uma falsa racionalidade – e é para isso que se
prestam as racionalizações – que abala a saúde, a segurança pessoal, o senso de
pertença. É do medo de perder o pouco que seus filhos lhes concedem em termos
de atenção e presença afetuosa. O
primado da ‘falta de tempo’ torna muito difícil viver um dia a dia em que a
pessoa está sujeita ao pânico de não ter com quem contar.
A irritação por precisar mudar alguns
hábitos. Muitos filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os
pais idosos ao médico, aos laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e
suas dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente de serem
ágeis nos gestos e decisões. Desde
os poucos minutos dos sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as
grandes filas nos supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas
quebradas e a hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que
tire o adulto de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é
causa de irritação. Inclusive por que o próprio lazer, igualmente, é executado
com horário marcado e em espaço determinado.
Nas
salas de espera veem-se os idosos calados e seus filhos entretidos nos seus
jornais, revistas, tablets e celulares. Vive-se uma vida velocíssima, em que
quase todo o tempo do simples existir deve ser vertido para tempo útil,
entendendo-se tempo útil como aquele que também é investido nas redes sociais. Enquanto
isso, para os mais velhos o relógio gira mais lento, à medida que percebem,
eles próprios, irem passando pelo tempo. O tempo para estar parado, o tempo da
fruição está limitado. Os
adultos correm para diminuir suas ansiosas marchas em aulas de meditação. Os
mais velhos têm tempo sobrante para escutar os outros, ou para lerem seus
livros, a Bíblia, tudo aquilo que possa requerer reflexão. Ou somente uma leve
distração.
Os idosos leem o de que gostam.
Adultos devoram artigos, revistas e informações sobre o seu trabalho, em suas
hiper especializações. Têm que estar a par de tudo just in time – o que não
significa exatamente saber, posto que existe grande diferença entre saber e
tomar conhecimento. Já, os mais velhos querem mais é se livrar do excesso de conhecimento
e manter suas mentes mais abertas e em repouso. Ou, então, focadas naquilo que
realmente lhes faz bem como pessoa. Restam poucos interesses em comum a
compartilhar. Idosos
precisam de tempo para fazer nada e, simplesmente recordar. Idosos apreciam
prosear. Adultos têm necessidade de dizer e de contar. A prosa poética e
contemplativa ausentou-se do seu dia a dia. Ela não é útil, não produz
resultados palpáveis.
Ensaio da psicóloga Ana Fraiman – Publicado originalmente, com o título “Idosos órfãos de filhos vivos – Os
novos desvalidos”, em seu site oficial onde
você pode ler este ensaio na íntegra e
outros textos superlativos de Ana Fraiman.
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